Por Marcelo Cardoso para o Valor

O colunista Marcelo Cardoso defende que a liderança precisa encarar o paradoxo de se fortalecer sem deixar de delegar para criar uma colaboração mais eficaz nos times

Em 2019, participei em Berlim de um programa do Presencing Institute, do professor Otto Schamer, do MIT, sobre liderança em ecossistemas. Foram três módulos ao longo de um ano que reuniram mais de 50 pessoas de mais de 20 países, de todos os continentes, membros de empresas, ONGs, governos, e universidades.

A principal crença compartilhada por esse grupo era de que as organizações estão evoluindo e deveriam se assemelhar mais a ecossistemas, arranjos em que os fluxos, as relações e a colaboração são os impulsionadores e criadores de valor. Logo no primeiro módulo, a principal questão foi “qual seria o papel da liderança individual em um ambiente que privilegia o grupo, a distribuição de poder e a inteligência coletiva?”

Apenas o primeiro módulo já valeu o programa para mim, pois estava desenvolvendo uma empresa para evoluir como um ecossistema, por meio de um modelo de autogestão direcionado pela transformação das pessoas e da força das relações e comunidades. O que ficou muito saliente na minha experiência inicial nesse processo foi: ao ter reduzido a minha influência e liderança para dar espaço para as outras pessoas que estavam chegando no sistema, na prática, o que aconteceu foi um enfraquecimento de todo o sistema e um menor engajamento das pessoas.

Essa percepção me trouxe a clareza que, paradoxalmente, quanto mais eu me aproprio da minha liderança e da minha capacidade de influenciar a serviço da construção do ecossistema, mais o sistema e as relações se fortalecem.

Como dizia Nietzsche, você só está maduro para uma relação se estiver pronto para perdê-la. Para as lideranças um paradoxo similar é válido: só existe time forte em colaboração verdadeira, se for feita com indivíduos fortes e maduros. Relações verdadeiras pressupõem seres humanos adultos e maduros.

A colaboração está no cerne dos modelos de ecossistemas, e eles se beneficiam pelas diferenças entre os envolvidos. Em 2017, Alison Reynolds e David Lewis escreveram um artigo para a “Harvard Business Review”, demonstrando como desafios de times são resolvidos melhor e mais rápido acessando as suas diversidades cognitivas.

Importante dizer que a diversidade cognitiva tratada na pesquisa não se refere necessariamente a diversidade de gênero, raça, etnia – aspectos muito importantes naturalmente – mas o artigo focava a diversidade cognitiva como a forma como pessoas, diferentes entre si, pensam e se engajam em situação complexas e incertas de mudança, como processam conhecimento e sustentam as diferentes perspectivas.

Mas qual a relação entre diversidade cognitiva, times, colaboração e liderança?

Estamos em um momento de transição na compreensão e no desenho de modelos de gestão pós-impacto da pandemia. Estamos saindo de um paradigma de gestão baseado em organizações mecânicas, onde ter sucesso significava planejar e controlar, alocando pessoas a partir de hierarquias, desdobradas de processos e metas; para um novo paradigma de organizações complexas, que precisam ser geridas de modo mais dinâmico a partir de padrões emergentes, realizado por pessoas com múltiplas perspectivas, que constroem hipóteses que precisam ser validadas por meio de protótipos e uma execução ágil.

Pois bem, no modelo anterior de gestão valorizava-se (e ainda persiste essa visão em muitas organizações) como líder aquele perfil de indivíduo, geralmente homem, com capacidade de comando, que sabe lidar bem com poder concentrado, e que demonstra segurança (ao menos em aparência), tendo sempre respostas para tudo, distribuindo tarefas e atribuições aos seus subordinados, e coordenando as várias áreas e interações entre os pares. Um modelo de líder que não funciona para ambientes complexos porque por mais brilhante que uma pessoa seja ela é incapaz de sustentar a multiplicidade de perspectivas necessárias para lidar com desafios neste contexto.

Assim, um imperativo para o novo paradigma organizacional é um modelo de liderança preparado para o poder distribuído, seja num formato onde o líder distribui o poder ao seu time, mas mantendo a palavra final para si; ou no mais extremo, os modelos de autogestão inspirados em abordagens como a holocracia e a sociocracia, em que as decisões também são distribuídas e compartilhadas.

As exigências sobre o papel da liderança estão se transformando e demandando de nós as qualidades para as quais não fomos preparados ao longo da vida, nem na família, na escola ou nas próprias organizações. Para que possamos construir modelos de lideranças coletivas, é preciso que aqueles que possuem mais poder no sistema estejam predispostos a distribui-lo colocando-se vulneráveis diante de seus times, permitindo assim que eles amadureçam para receber o poder disponível para eles.

É preciso que esses colaboradores-líderes lidem com as consequências dessa nova configuração, inspirando-se no exemplo para também se colocarem de forma humana e vulnerável. Só assim poderão criar a base de confiança que permitirá, por meio da divergência saudável, o grupo acessar a diversidade cognitiva e a inteligência coletiva necessárias para encarar os desafios contemporâneos enfrentados pelas organizações.