Por Marcelo Cardoso

O colunista Marcelo Cardoso escreve sobre a capacidade de auto-organização do ser
humano e como isso pode ser aplicado nas organizações

O “poderoso excêntrico” é uma figura arquetípica muito presente em nosso imaginário cultural, que aparece nas nossas histórias desde sempre, de imperadores romanos a reis loucos medievais, das peças de Shakespeare aos personagens cômicos da “Sessão da Tarde”.

Essa representação está tão entranhada em nós, nos fascinando e indignando na mesma medida, que, de tempos em tempos, quando surge alguém de carne e osso que se assemelha a essas figuras, temos uma dificuldade enorme de separar o mito e a realidade, e reagimos de forma apaixonada – seja pela supervalorização dos seus feitos, seja pelo desprezo absoluto pela pessoa. Assim, perdemos de vista questões
um pouco mais intricadas que nos falam do mundo que possibilita esse tipo de fenômeno e sobre nós mesmos. Recomendo o equilíbrio entre pensamento crítico e empatia ao analisarmos esses indivíduos.

Acabo de ler a sua biografia, escrito por Walter Isaacson, quem já escreveu antes sobre as vidas de Steve Jobs e Leonardo da Vinci. Todo o livro parece se sustentar nessa indissociação entre o caráter inovador brilhante e o monstro insensível, a começar pela citação inicial, atribuída ao próprio biografado: “para qualquer um que eu ofendi, eu só quero dizer que eu reinventei os carros elétricos, e estou mandando pessoas para Marte em um foguete. Você pensou que eu também seria um cara normal e tranquilo?”.

Isaacson reforçou essa perspectiva posteriormente em entrevistas, chegou a dizer que somente pessoas assim, destemidas e brutais, podem alcançar tamanho sucesso para chegar aonde ninguém chegou antes, e que, em oposição, àqueles mais ponderados e sensíveis cabe o papel de observador na história. O autor ainda sugere que alguns desses inovadores como Musk, Jobs e outros, têm paixão pela humanidade, mas desprezo pelo ser humano, e que o preço a pagar pelas inovações dessas pessoas seria lidar com as consequências das personalidades distorcidas e abusos que eles cometem.

Talvez seja impossível separar nessas pessoas o aspecto inovador e benéfico do aspecto sombrio de suas psiquês – de alguma forma, todos nós vivemos esse paradoxo, em que nossas potências nascem da tentativa de proteger um profundo vazio, um trauma ou senso de inadequação interna. Porém, tenho convicção de que é possível transformar os vícios de nossa personalidade em uma versão mais madura, integrada e funcional, sem perdermos nossas potencialidades que nos destacam.

Mas a questão que se levanta, então, por que essas pessoas não só se recusam a melhorar, como enaltecem e são celebradas por tais características destrutivas?

E a resposta prosaica é que, enquanto houver investidores ganhando com esse tipo de comportamento, os desvios de personalidade dessas pessoas serão tolerados e até incentivados. Até o ponto quando o comportamento deles coloca o negócio em risco, e então são afastados e descartados.

Como quase sempre, os lucros são maximizados e as consequências desastrosas para milhares de pessoas tornam-se um passivo para a sociedade, e até mesmo para o “excêntrico ex-gênio”, que se vê finalmente apartado de sua obra mas não de seus demônios. E provavelmente já será tarde demais para arrependimentos.

Talvez essas histórias sejam fascinantes para nós por serem uma metáfora da nossa sociedade, nesse constante desequilíbrio entre o exagero na busca pelo domínio do mundo externo, material e tecnológico e a aridez desleixada com o mundo interno, da falta de maturidade psíquica, ponderação e sensibilidade humana. É a história que vivemos como espécie.

Há uma outra história possível: em cada um de nós, e como sociedade, pode existir uma dança entre a constante investigação interna com a busca por realizações externas. Atualizando o mundo e a nós mesmos de forma ponderada, integrada e digna.

Precisamos começar a valorizar outras histórias e personagens.

Link para o artigo original: https://valor.globo.com/carreira/coluna/por-que-vemos-genios-e-loucos-de-forma-apaixonada.ghtml

Marcelo Cardoso é fundador da consultoria Chie e presidente do Instituto Integral Brasil