Por Marcelo Cardoso
O colunista Marcelo Cardoso propõe uma reflexão sobre como lidar com os complexos dilemas do nosso tempo de forma coletiva
Em meus artigos, eu tenho chamado o grande desafio civilizatório que enfrentamos de metacrise. Esse é um termo que tem sido usado por alguns
pensadores e think tanks internacionais para descrever o contexto da nossa sociedade atual, com uma série de crises de dimensões globais entremeadas que se retroalimentam e que aceleram pela rápida evolução tecnológica.
A metacrise nos arremessa na incerteza e na perplexidade da falta de respostas, pois, quando consideramos todos os elementos e implicações simultaneamente, percebemos que a mera tentativa de resolver algum deles separadamente (crise climática, política, econômica, social…) nos levaria ao agravamento do outro, retroalimentando a metacrise. É um termo que descreve uma intrincada rede de impossibilidades e de paradoxos, e que, portanto, nos tira do controle sobre as nossas “caixinhas de preferência” e ameaça a nossa percepção de poder e de escolhas.
A forma como essas pessoas em posições de poder se comportam diante desse quadro reflete a própria percepção do que significa poder, e examinar essas concepções torna-se imprescindível para a mobilização e as escolhas que se fazem necessárias para este momento em que se encontra a nossa civilização.
O poder muitas vezes é descrito de uma forma negativa e “maquiavélica” pelo senso comum. Se acreditamos que essa seja a única forma de se exercê-lo, podemos acabar agindo dessa forma cínica e individualista (já tratei sobre eles no meu artigo sobre as sombras). Se acreditamos no poder como uma potência heroica personalizada, podemos também querer bancar o super-herói centralizador e autossuficiente (que mobiliza ações irrefletidas unilaterais, sem escuta, o que normalmente não leva a resultados efetivos e nem afetivos).
James Hillman, escritor e terapeuta junguiano, nos ofereceu uma reflexão interessante sobre esse assunto em “Tipos de Poder”, livro de 1995. Não se trata da elaboração de uma teoria de poder aplicada na gestão, mas uma obra que oferece diferentes concepções e expressões do que significa poder. Segundo o autor, muitas vezes esquecemos que o poder tem muitas faces, muitas expressões diferentes. “O empoderamento vem da compreensão do mais amplo espectro de possibilidades para abraçar o poder.”
Já professor de biologia e neurologia Robert Sapolsky, da Universidade Stanford, nos provoca no livro “Determined”, com a constatação de que não existe algo como livre-arbítrio. Somos organismos biológicos totalmente condicionados em nossos comportamentos pelas nossas heranças genéticas e epigenéticas. A afirmação que o livre-arbítrio é um mito afeta diretamente a nossa concepção de escolhas e nos exige humildade.
O risco aqui é utilizarmos percepções como essas para nos eximir da responsabilidade, atribuindo à biologia nossos comportamentos predatórios e egoístas, um paralelo embasado pela ciência do conceito de Hannah Arendt, da “banalidade do mal”, que descrevia a defesa típica dos oficiais nazistas: “não sou culpado, apenas seguia ordens”.
Se somos individualmente seres biológicos, temos que desvendar o que seremos como sociedade. “O que será realmente desafiador”, diz Sapolsky, “é descobrir como estruturar uma sociedade que realmente funciona humanamente, construída em torno da noção de que somos apenas organismos biológicos.”
Temos que ressignificar o poder e as nossas escolhas no século XXI nesse contexto de metacrise, em que não temos meios e respostas disponíveis para resolver os problemas por si só e de forma isolada. Encontrar um lugar renovado que nos posicione além da polaridade entre a impotência autoindulgente e a superpotência arrogante.
O maior recado da crise que vivemos é o reconhecimento que não dominamos a natureza e nem nada realmente. Isso nos coloca nesse lugar humilde sem certezas, de coletivamente lidar com os nossos dilemas, para podermos nos colocar em nosso lugar de direito no planeta.
Link para o artigo original: https://valor.globo.com/carreira/coluna/o-poder-de-escolha-e-as-escolhas-de-poder.ghtml
Marcelo Cardoso é fundador da consultoria Chie e presidente do Instituto Integral Brasil
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