Por Marcelo Cardoso para o Valor

O colunista Marcelo Cardoso critica esse legado e afirma que vamos todos perder se continuarmos neste caminho

Umas das coisas que a guerra entre Rússia e Ucrânia mostra é que conflitos violentos se tornaram inaceitáveis para a opinião pública – ao menos nessa escala e entre países razoavelmente desenvolvidos e institucionalmente estáveis. Há em curso um importante debate sobre em que medida ainda toleramos conflitos violentos que ocorrem em regiões periféricas, sejam entre países ou grupos civis, no campo ou nas periferias das cidades. Mas quero me dedicar aqui a outro tipo de guerra – normalizada e da qual participamos todos os dias – e de como ela retroalimenta a cultura de persistente fixação em comportamentos bélicos.

A história das organizações modernas está intrinsicamente ligada ao legado militar das duas grandes guerras do século XX. Primeiro, pelas demandas geradas que possibilitaram crescimento e modernização industrial. Posteriormente, quando as organizações absorveram em seus quadros administrativos oficiais de alta patente, importando muito do legado estrutural e cultural das instituições militares.

Ainda hoje esse legado está introjetado das mais diversas formas, seja na linguagem, nas estruturas ou nas práticas corporativas. Exemplos? Ouvimos diariamente que as organizações têm público-alvo, que recrutam pessoas, possuem headquarters, linha de frente e squads, e expressões como “meta dada é meta cumprida” e “bom soldado não discute as ordens, cumpre”.

Nas estruturas, vemos ainda o paradigma dominante nos modelos altamente hierarquizados e nas cadeias de comando e controle. Há aqueles que ditam as ordens e aqueles que obedecem, seguindo estratégias que basicamente consistem em dominar territórios e neutralizar concorrentes.

Nas práticas, há uma variedade de movimentos: é ainda comum, por exemplo, que equipes não enunciem os nomes dos concorrentes, apenas tratando-os pelo codinome – numa adaptação de uma famosa estratégia de propaganda de guerra, que visa desumanizar o adversário, impedindo qualquer empatia e conexão.

Espionagem e sabotagens também estão presentes e não é raro ver comemorações pela derrota ou fracasso de um concorrente, como se ele fosse um inimigo abatido.

As pessoas muitas vezes são tratadas como tropa e recebem uma enorme carga de pressão por performance, o que as leva a realizar loucuras para bater as metas. As vítimas desse processo destrutivo são relativizadas em nome do objetivo maior da companhia – algo muito similar com a retórica militar em tempos sombrios.

Obviamente, esse legado permitiu resultados econômicos, eficácia e desenvolvimento tecnológico, mas está cada dia mais evidente que esta fase já acabou e que lidamos agora com os inevitáveis custos globais que essa mentalidade causou. Nesta guerra vamos todos perder se continuarmos neste caminho.

Como sair dessa rota? As evidências demonstram que o melhor desempenho organizacional depende de empresas voltadas a seres humanos capazes de criar ambientes de segurança psicológica e, assim, de permitir novas linguagens e abordagens. As organizações precisam urgentemente fazer esta transição para uma mentalidade de conexões, regeneração, resiliência e evolução.

Marcelo Cardoso, autor de “Gestão Integral – Consciência e Complexidade nas organizações” e fundador da Chie, consultoria a serviço da evolução de organizações e indivíduos.

Este artigo reflete a opinião do autor e não a do Valor Econômico.