Por Marcelo Cardoso para o Valor
O colunista Marcelo Cardoso fala sobre a importância de rever os modelos de gestão que buscam o resultado a qualquer custo
Vivemos tempos com desafios importantes em muitas direções e camadas. Temos as consequências das mudanças climáticas, o aumento de desigualdade, a guerra na Europa, as rupturas provocadas pelas novas tecnologias, para ficar em apenas algumas. Acredito que são sintomas de uma metacrise maior que nos coloca diante de um dilema civilizatório sem precedentes.
Daniel Schmachtenberger, um filósofo social que se dedica ao estudo de alternativas para lidarmos com esta metacrise, argumenta que um dos elementos centrais para a transformação que precisamos passa, necessariamente, pela mudança dos mecanismos de incentivo que mobilizam todo o sistema. E atualmente, o principal mecanismo de incentivo que direciona os comportamentos individuais e coletivos é o lucro.
Provavelmente no Brasil, ninguém capturou melhor as regras do jogo da lucratividade do que a 3G Capital, ao desenhar organizações e culturas para maximizar resultados, como nas empresas que compõe a AB InBev, na Kraft Heinz, na Americanas, entre outras do grupo.
Em 1996, aos 30 anos, fui trabalhar para a GP Investimentos – que ainda era controlada pelos atuais sócios da 3G – para ser CFO de uma holding de entretenimento, a Playcenter S/A. Durante a seleção para a vaga passei um sábado inteiro sendo entrevistado no prédio da GP da Faria Lima, e o que mais ouvia era que me fariam um milionário, desde que eu colocasse o trabalho acima de todos os papéis da minha vida.
Logo após assumir como CFO, fui convidado para ser o CEO responsável pela construção e operação do parque Hopi Hari. Ao todo, passei seis anos trabalhando na GP, e posso dizer, sem sombra de dúvida, que foi o período mais intenso e de maior aprendizado da minha vida profissional.
Foi no mesmo período em que, depois de uma crise existencial, virei uma chave interna e decidi me dedicar ao propósito de trazer mais consciência para as organizações, buscando implementar muito do que eu estava aprendendo na época. Depois, ao ser demitido, ouvi que eu era um bom gestor “homeopata” e que o parque precisava de um “alopata”. Essa era a forma de me dizerem que se esperava de mim cortes de custos mais radicais, mais OBZ’s (orçamento base zero, uma metodologia criada nos anos 50) e aumento de EBITDA.
Essa é a mentalidade que rege não só a 3G, mas todo o mercado de capitais: uma empresa só tem valor se tiver lucro e uma perspectiva de crescimento perpétuo.
No Brasil, os pioneiros pela institucionalização desta mentalidade foram os fundadores do banco Garantia, ao associar a maximização de lucros às metas dos executivos, colocando bônus por resultados como mecanismos de incentivo na empresa.
Atrelado a este tipo de movimento existia (e ainda persiste) a crença de que alguns poucos homens eram diferenciados por produzir grandes resultados e merecedores de receber o grande “prêmio”, que seria a oportunidade de tornarem-se milionários. Essa era a “cenoura” e buscava-se homens com esta “fome”.
O grande problema disso é que a obsessão pelo EBITDA mensal e estes mecanismos de incentivo afetam diretamente o comportamento e a tomada das decisões da liderança, envolvendo atropelos nas iniciativas de gestão. E quando os meios operacionais não são suficientes para se atingir as metas, se utilizam os limites aceitáveis de contabilização para que o EBITDA seja o orçado.
Algumas vezes os limites aceitáveis tornam-se inaceitáveis. É o que parece ter sido no caso da crise atual envolvendo a Americanas. Em muitos momentos eu estive imerso neste processo de atingir o EBITDA orçado a qualquer custo, que envolvia o aumento de pressão, estresse e ansiedade coletiva, o que limitava a capacidade de as pessoas envolvidas compreenderem realmente as implicações, no longo prazo, das decisões de curtíssimo prazo pela qual estávamos comprometidos. Como dizíamos na época, durante muito tempo estávamos vendendo o jantar para poder almoçar. Para uma situação dessas descambar para um rombo gigantesco, basta um passo em falso.
Como disse Hannah Arendt, filósofa alemã, são as pessoas comuns que cometem o mal (estamos testemunhando muitos exemplos dessa afirmação na sociedade), não são os monstros. Ela diz ainda que só nos tornamos realmente humanos quando nosso pensamento nos permite compreender a extensão dos nossos atos. Nos cargos de liderança, essa capacidade é decisiva para não nos comprometermos com decisões de grande impacto negativo, em nome do lucro, dos bônus.
O modelo de remuneração talvez seja o artefato na cultura das organizações que mais molda comportamentos e retroalimenta este círculo vicioso que impulsiona o poder econômico na sociedade. Essa crença exagerada no modelo de meritocracia individual para produção de resultados, a valorização e o destaque de empresas e seus executivos que entregam resultados financeiros a qualquer custo.
Uma empresa é muito mais do que seus resultados financeiros. Uma empresa só tem valor para a sociedade e para o planeta se tiver um propósito e o seu resultado só faz sentido no longo prazo se criar impacto positivo, produzindo prosperidade nos ecossistemas em que influencia e é influenciada. É isso que eu tenho aprendido como executivo e consultor nestes últimos 20 anos.
A pergunta que precisamos responder é quantos eventos similares ao das Americanas – que não foi o primeiro – serão necessários para que possamos fazer a transição para um novo sistema, com os mecanismos de incentivo adequados ao século XXI. Até lá, seremos cúmplices dessa metacrise em que nos enfiamos.
Venha com a gente