Por Marcelo Cardoso para Think Work Lab

Para entendermos o movimento da Grande Renúncia, a saída voluntária das pessoas do mercado de trabalho, precisamos desdobrar os elementos envolvidos nessa questão. Esse é o tema do artigo de estreia de Marcelo Cardoso na Think Work

Um fenômeno que ganhou visibilidade ultimamente é o que tem sido chamado de “The Great Resignation”, algo como “A Grande Renúncia”, em português.

A Grande Renúncia é o movimento de demissão voluntária – e sem a perspectiva imediata da busca por recolocação − de milhões de trabalhadores mundo afora. A Grande Renúncia tem sido percebida em países como Estados Unidos, China, Índia, Reino Unido, Alemanha e França. Em fevereiro de 2021, a consultoria Oliver Wyman apontou que 44% dos brasileiros estavam revendo suas prioridades de vida, um indício de que o fenômeno poderia estar surgindo por aqui também.

Evidentemente, a pandemia é um componente significativo para o que está ocorrendo. Nos Estados Unidos, 20% dos trabalhadores de saúde se demitiram entre o começo da crise, em março de 2020, e novembro de 2021. Mas, é mais sensato supor que a pandemia é um catalisador de um processo que já estava sinalizado.

Em 2016, por exemplo, uma pesquisa do Global Wellness Institute apontava que 3.2 bilhões de trabalhadores no mundo estavam progressivamente infelizes, por conta da insegurança econômica, doenças e estresse. Em 2018, Jeffrey Pfeffer, professor de comportamento organizacional da universidade de Stanford, lançou o livro Morrendo por um Salário, no qual defende a ideia de que o trabalho é a causa das principais doenças modernas.

Um estudo publicado pelo Fórum Econômico Mundial e pela Harvard School of Public Health estima que, em 2030, o custo global com doenças mentais será de 6 trilhões de dólares, mais do que o dobro do que o valor gasto em 2010. Em 2019, a Organização Mundial da Saúde incluiu o estresse na lista de doenças ocupacionais.

Por outro lado, vemos que a relação das pessoas com o trabalho está em transição. Isso fica claro quando temas como propósito, qualidade de vida e flexibilidade começam a ganhar terreno, desbancando mecanismos tradicionais de incentivo, como salários, bônus, estabilidade e outros benefícios advindos dos princípios da meritocracia.

Se esse mundo (do emprego) está acabando, não temos ainda ideia do que irá emergir.

Na ausência de certezas, é comum nos apressarmos para dizer como será o futuro e, para isso, arrastamos o passado conosco, borrando o potencial do que pode vir a ser.

Em todas as transições existe um espaço, uma zona neutra, entre o que está morrendo e o que está por emergir. É nesse lugar que acontece a dúvida, a confusão curiosa e a suspensão temporária da ação. É um tempo de gestação, de emergência e crescimento. E, para que aconteça, temos de tirar a mão da realidade.

O que sabemos e o que está sendo colocado em xeque na Grande Renúncia são valores que orientaram a ética das pessoas na relação com o trabalho nos últimos duzentos anos. Foi uma época em que o trabalho se transformou em emprego, com a crença no mérito individual de uma sociedade que precisava crescer a produtividade para aumentar a renda e o consumo; na qual as pessoas se preparavam durante a infância e a adolescência para uma profissão e um emprego estável, para depois desfrutar da aposentadoria.

As organizações foram modeladas como sistemas mecânicos, para gerir recursos – inclusive reduzindo os seres humanos a meros componentes –, e essa condição não oferece significado, promove bem-estar nem realização.

Também sabemos, pela psicologia existencial e pela neurociência, que alguns princípios da relação do ser humano com o trabalho são perenes e tendem a continuar fazendo parte da experiência humana – e aqui me refiro a trabalho, e não a emprego. É intrínseca a experiência de dar sentido à vida na mesma dimensão que os relacionamentos e, portanto, esse impulso por significado deve continuar a fazer parte da experiência humana.

O que nós não sabemos é como a tecnologia vai afetar nossa experiência com o trabalho, como a desigualdade na distribuição de renda e as oportunidades irão ocorrer, e como se dará a dinâmica entre a busca por sobrevivência e por significado. Desconhecemos o que irá significar “bem-estar” e “qualidade de vida”. Não conseguimos prever qual narrativa emergirá: se o futuro será utópico ou distópico.

Para entendermos um pouco mais A Grande Renúncia, podemos fazer um exercício simples, desdobrando os elementos envolvidos nessa questão.

Imagine um iceberg. Na superfície vemos os desafios (encontrar significado e realização no trabalho) e os comportamentos (parte das pessoas tentando fazer mais do mesmo mais rápido, outra parte se demitindo). Pouco abaixo, estão os pensamentos (o diálogo interno, como “eu preciso ter sucesso”, “preciso pagar minhas contas”, “estou infeliz”) e os sentimentos que geram tensão (ansiedade, frustração, angústia). Em seguida, vêm os valores em jogo (viver por um propósitose realizar). Mais profundamente aparecem as necessidades (segurançaautoestimapertencimento). E, lá no fundo, o que realmente direciona as pessoas: os medos (de abandonode solidãode fracassode exclusão)  que remontam, individual e coletivamente, às experiências de infância.

É isso que está na base dessa transformação: a crença profunda do trabalho como uma fonte de preenchimento das nossas lacunas de segurança, afeto e sucesso.

O desafio está em, por meio do autoconhecimento, reconhecermos que o trabalho não vai preencher essas lacunas. Só assim poderemos abraçar a incerteza e a confusão, para depois semearmos novas narrativas e crenças – que talvez não se consolidem no nosso tempo de vida.

Fica aqui o convite para nos conectarmos com o sentido mais profundo de nossas vidas; reconhecermos a dor e a confusão de nossos tempos, para sermos cocriadores de futuros possíveis e desejáveis, estando abertos para lidar com o que emergir da realidade. Vamos em frente?