por Ricardo Ferrer
Pouca gente sabe que no dia 01 de março foi comemorado O Dia Mundial do Futuro.
Pode parecer estranho dedicar uma data festiva para algo tão ‘abstrato’ como o futuro, mas segundo seus idealizadores1, o objetivo desta data é “dar visibilidade e celebrar a energia que mais e mais pessoas ao redor do mundo estão direcionando para a criação de um futuro radicalmente melhor”. Então a história começa a fazer sentido, pois esta data diz mais respeito ao momento presente e as escolhas que estamos fazendo agora, algo bastante concreto.
Esse tema me faz lembrar de um trecho muito inspirado de um artigo2 do filósofo estadunidense Ken Wilber, em que ele elabora sobre as ideias de outro filósofo, o britânico Alfred N. Whitehead, a respeito do “avanço criativo para a novidade”. Wilber diz que no momento presente “herdamos o passado”, ou seja, somos influenciados e moldados até certo ponto por aquilo que aconteceu antes, mas também, podemos “até certo ponto, transcender o passado” via a própria criatividade. Assim, em cada momento, há herança do passado e a capacidade intrínseca para a novidade, para a inovação e liberdade. Wilber chama isso de Carma e Criatividade.
Vale muito a pena refletir a respeito desta tensão constante entre o que o passado traz e o que o futuro possibilita, que todos nós experimentamos o tempo todo, seja nas nossas vidas pessoais, na nossa carreira e atuação social. A cada nova escolha (ou a cada não-escolha) nós estamos vivendo a dança entre estas forças do Carma e da Criatividade.
Qualquer tensão gera desconforto mas precisamos ser capazes de sustentar essa sensação, pois evitá-la não é uma escolha sábia e nem possível.
Quando tentamos nos desfazer da tensão por argumentos como “sempre foi feito assim”, “time que está ganhando não se mexe”, “todo mundo faz dessa forma”, estamos ignorando oportunidades de mudar o curso das coisas e de interromper padrões viciados, desprezamos o inusitado e o mistério, abafamos possibilidades novas que estavam prontas para emergir e que poderiam transcender um problema em questão. Há aqui o risco de sermos deixados para trás no tempo e as nossas posições tornarem-se obsoletas e inócuas diante de uma realidade maior que está sempre em mutação.
Quando, pelo contrário, tentamos apagar completamente o passado numa decisão, quando queremos “por uma pedra em cima deste assunto”, e “não se fala mais isso”, pois a “página está virada”, quando queremos revolucionar completamente e virar a mesa de forma obtusa, quando “desejamos” construir futuros como um simples ato de vontade (pessoal ou coletiva), estamos ignorando dinâmicas poderosas do passado subjacentes ao assunto.
A força de um passado mal metabolizado gera desdobramentos imprevisíveis no sistema, e o resultado inesperado e indesejável pode ocorrer em uma situação tão diferente da original, que muitas vezes nem somos capazes de identificar a raiz do problema, dificultando a correta intervenção para corrigir a bagunça. Há estudos da epigenética que demonstram, por exemplo, que um trauma individual ou coletivo do passado pode gerar marcas genéticas nas gerações futuras que não foram expostas ao evento traumático, para vermos a extensão e a seriedade com que o passado pode nos marcar.
O passado precisa ser considerado atentamente e suas implicações cuidadosamente direcionadas para uma resolução real, assim levamos em frente aquilo que precisa ser carregado do passado e deixamos para trás aquilo que precisamos desaprender (deixar de apreender). E é assim que abrimos espaço para o inédito, daquilo que podemos criar de novo para o futuro.
E voltamos então ao tema do futuro. Segundo os estudiosos nos Estudos de Futuros3, existem três princípios que orientam suas pesquisas: 1. O futuro não é predeterminado, ou seja, ele não é formado por um destino imutável e implacável. 2. O futuro não é previsível, ou seja, não há dados suficientes que possam garantir que os eventos ocorram em determinada direção, podemos ter apenas estimativas e construir cenários plausíveis; e finalmente, 3. O futuro pode ser influenciado por nossas escolhas no presente, o que reforça aquilo que falamos anteriormente, que temos a responsabilidade sobre o futuro.
Mas é muito importante termos cuidado nesta intenção de cocriar um futuro, pois o inédito e o melhor futuro possível para o planeta não é necessariamente o “futuro que é desejado” por nós. Basta pensar que em toda história humana construímos futuros desejados por alguém em algum lugar: a industrialização com seus benefícios e malefícios, as instituições, os sistemas sociais e econômicos, as invenções, as guerras… tudo isso é fruto de desejos e as “melhores intenções” de pessoas e grupos, e mesmo assim, gerando consequências indesejáveis ao planeta e a todos.
Um futuro que vale a pena para todos nós não é um futuro que seja a somatória do desejo dos indivíduos, um futuro assim, muito provavelmente nos levaria a um caos antropocêntrico. E será que não é justamente isso que está ocorrendo atualmente?
Eu prefiro a abordagem expressa pelo escritor e místico Alan Moore em uma entrevista em 2011: “Em meu relacionamento com o universo, costumo me ver como um parceiro júnior. Não quero impor minha vontade ao universo, prefiro que o universo imponha sua vontade a mim. Eu preferiria que o que eu queria estivesse mais em sintonia com o que o universo queria. Então minha definição de magia é um pouco menos invasiva e intrusiva.”. Você pode substituir a palavra magia por filosofia de vida, e fará todo o sentido.
Outro escritor, o Rabino Nilton Bonder, também abordou esta questão quando escreveu o livro “O Sagrado”, como uma resposta ao sucesso editorial esotérico da época “O Segredo”: “O sagrado é a descoberta de que você é parte de alguma coisa que é muito importante. Nem eu, Nilton Bonder, nem você, nem nenhum guru somos privilegiados porque conhecemos O Segredo. Somos parte de um projeto maior. O sentido transcende as biografias de cada um, não importa quantos prédios ergueu, quantos livros escreveu ou quantos amores teve em vida.”, disse ele em entrevista à Clara Passi no jornal do Brasil em 2007.4
E essa questão resume a outra tensão pertinente nesta discussão, que é a tensão das polaridades entre o todo e as partes. Será que nós, como partes do planeta e da sociedade, não temos que dar um passo atrás, e não pensar tanto no que queremos do futuro, mas sim, o que o futuro quer de nós?
Então talvez seja este nosso desafio como “futuristas” em tempos de complexidade:
Cada um de nós tem a responsabilidade (a habilidade de responder) sobre o futuro, sendo informados pelo passado, desaprendendo aquilo que precisa ser deixado para trás e se abrindo para criarmos juntos o inimaginável, um futuro que seja mais a expressão do potencial evolutivo da totalidade e um pouco menos fruto da vontade dos indivíduos participantes.
2. O artigo “O Limiar de uma Era Integral” de Ken Wilber, traduzido por Ari Raynsford pode ser encontrado em https://www.ariraynsford.com.br/
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