Por Marcelo Cardoso para Think Work Lab

Ao tentarmos resolver de forma apressada os problemas da sociedade, acabamos gerando ainda mais crises, escreve Marcelo Cardoso para a Today

Conta o mito de Hércules que, certa vez, ele teve de enfrentar um monstro de nove cabeças em um pântano fétido. Era uma hidra que tinha uma cabeça imortal e, todas as vezes em que Hércules atacava-a cortando uma das cabeças, outras duas nasciam no lugar. A besta só foi vencida quando Hércules mudou de estratégia e abandonou o seu modo habitual de enfrentar os seus desafios. Para derrotá-la, ele ajoelhou-se no pântano e ergueu o inimigo para fora daquelas águas, deixando-o sem forças.

A beleza da mitologia é que seus símbolos podem ser atualizados sempre para novos contextos – e essa passagem da hidra serve perfeitamente para ilustrar a ideia central que embasa a narrativa da Metacrise. Trata-se de um conceito contemporâneo que tem sido usado por uma nova geração de pensadores para explicar a situação atual da humanidade e a nossa dificuldade em resolver nossos desafios mais urgentes.

Para exemplificar a Metacrise, Daniel Schmachtenberger (The Consilience Project) conta no podcast de Tristan Harris (O Dilema das Redes) que a primeira vez que o problema lhe chamou atenção foi quando, em determinada região africana, criou-se uma lei de proteção contra a caça ilegal de elefantes. Como resultado, os caçadores começaram a caçar outras espécies ameaçadas como gorilas e rinocerontes. Segundo ele, ao não atacar o problema da pobreza na região, a lei apenas mudou o problema de lugar. Apenas cortaram a cabeça de uma hidra.

A Metacrise diz respeito ao problema que nós criamos ao tratar de forma superficial os desafios que temos, gerando externalidades tão nocivas quanto a questão inicialmente enfrentada. Isso pode ser visto no enfrentamento das mudanças climáticas, nas intervenções na economia, no combate ao crime organizado e assim por diante. Mesmo nas organizações vemos diariamente este tipo de solução que apenas desloca o problema de lugar. Os pensadores que têm se dedicado a este tema dizem que é preciso encontrar e enfrentar os principais padrões subjacentes que são geradores de todas estas crises, as quais ainda vemos de forma superficial. Em outras palavras, temos que levantar a hidra do pântano ao invés de atacar as suas cabeças imortais.

Entre os pensadores dedicados ao assunto, vale citar a definição de dois deles:

“A Metacrise é a crise subjacente que impulsiona uma infinidade de crises. Temos que entender melhor quem e o que somos, individual e coletivamente, para poder mudar fundamentalmente a forma como agimos. Esse enigma é o que agora é amplamente chamado de Metacrise que está dentro, entre e além da emergência e da crise. Esse aspecto de nossa situação é sócio-emocional, educacional, epistêmica e espiritual por natureza.”, Jonathan Rowson (Perspectiva).

“Há um grande número de crises atraindo cada vez mais atenção do público, como as crises ecológica, econômica, imigratória, geopolítica e energética. Mas há também uma crise invisível se desenrolando dentro de nossas próprias mentes e culturas que está recebendo muito menos atenção. Esta é a Metacrise, que tem a ver com a forma como os humanos entendem a si mesmos e ao mundo. É uma crise educacional generalizada envolvendo um conjunto de dinâmicas psicológicas relacionadas; sistemas e sociedades estão com problemas, mas é a psique – a dimensão humana – que está no maior dos apuros” – Zac Stein (Consilience Project).

Gosto de olhar os padrões geradores subjacentes à Metacrise na perspectiva dos indivíduos, das relações e dos sistemas. Na perspectiva dos indivíduos, vemos como uma Crise de Significado, em que as pessoas parecem perdidas em uma falta de autenticidade em suas experiências de vida, presas inconscientemente aos seus scripts de infância em busca de respostas superficiais, rendendo-se às narrativas que as afastam do verdadeiro sentido e significado.

Como sintomas deste aspecto, vemos o movimento da Grande Renúncia e a epidemia de doenças mentais e emocionais, como depressão, burnout, violência doméstica e hábitos viciosos.

Na perspectiva das relações humanas, vemos a Crise de Legitimidade e Liderança, em que o tecido social está fragilizado em confiança e protagonismo, resultando na incapacidade de criarmos entendimento mútuo e acordos comuns que considerem e ampliem nossa experiência para a nossa atuação sobre os desafios coletivos.

Como sintomas deste aspecto da Metacrise, temos a polarização política, o embate cultural e de fake news, as guerras e as revoltas populares, o gap de maturidade e de ética das lideranças oficiais para liderarem uma narrativa coerente que aproxime as pessoas numa causa comum.

Na perspectiva dos Sistemas, vemos a Crise dos Mecanismos de Incentivo, que são as regras do jogo político e econômico, oficiais e extraoficiais, que incentivam as pessoas e as instituições a serem beneficiadas em detrimento do planeta ou da maioria da sociedade. Vemos esse aspecto desta crise em fatores como a corrupção, os lobbies corporativistas, as guerras, a competição desleal interna e externa, a devastação do meio ambiente e o aumento da desigualdade social.

E o Papel das Organizações?

As organizações modernas são expressões de um paradigma mecanicista que muito contribuiu (e ainda contribui) para alimentar a Metacrise nos seus muitos efeitos e sintomas. Não é exagero dizer que elas prosperaram ao profissionalizar o tipo de mentalidade utilitária fragmentada – patologicamente desbalanceada para o lucro, para a competitividade e para o consumerismo – que produz em tal dimensão as externalidades de sua atuação, cujo impacto atingiu o limite de sustentação planetária.

Em linha com este pensamento, Nate Hagens demonstra em sua série de vídeos “The Great Simplification” como a sociedade moderna tornou-se um superorganismo devorador de energia, mediado pelas decisões meramente financistas do sistema, que agora estão num ponto de inflexão da sua insustentabilidade. Ao cocriar a Metacrise, as organizações minaram também a própria capacidade de continuar prosperando e estão agora sofrendo as suas consequências dramáticas – muitas delas já mencionadas anteriormente aqui e que são temas constantes desta coluna – e que estão agora no cerne das preocupações da gestão na atualidade.

O tipo de resposta padrão que as organizações encontravam para seus desafios não só é incapaz de resolver os problemas, como os aprofunda ainda mais. Essa é a mensagem da Metacrise para as organizações. Mais do que uma nova narrativa, este é um convite a ajoelharmos no nosso pântano a fim de repensarmos e debatermos de um lugar inteiramente novo sobre o papel, os modelos e as práticas das organizações.

As organizações podem e devem endereçar estas três dimensões da Metacrise:

  1. Criando significado para os indivíduos, promovendo um propósito genuíno e profundo, ao mesmo tempo em que cria condições para as pessoas trabalharem seus scripts em busca da integridade, a partir do seu sentido pessoal de propósito, acrescentando camadas de maior profundidade no aprendizado organizacional;
  1. Criando pertencimento nas relações, expandindo o sentido de comunidade no vínculo entre as pessoas, que se abrem com segurança psicológica para experimentar fluidez entre o delegar e o protagonizar, entre a soberania individual e o bem-comum; revisitando rituais, linguagem e simbologia, influenciando na cultura;
  2. Revendo os seus mecanismos de incentivo, como os modelos de bonificação, remuneração e desenvolvimento de carreira, favorecendo não apenas o capital financeiro, criando prosperidade a partir de outros metacapitais  e bottom-lines, como Capital Humano, Cultural, Social, Ambiental, Psicológico, Espiritual, etc.

Tratar estes desafios neste nível de profundidade e abrangência pode ser muito mais complexo do que usualmente fazemos, mas é melhor enfrentar algo complexo e possível de se resolver do que impossibilitar as soluções tratando as coisas de forma superficial.

E o Papel da Gestão de Pessoas?

Tratar destes grandes temas na profundidade necessária nos leva individualmente ao limiar da nossa própria ignorância e aos limites de nossas capacidades organizacionais. Este é um lugar obviamente desconfortável para nós, que sempre fomos treinados para ter eficiência e respostas rápidas para os problemas. Ele desafia a cultura média das organizações e tende a gerar bastante contestação por muitos executivos. Esse é o primeiro grande desafio que a Gestão de Pessoas enfrentará.

A Gestão de Pessoas na Metacrise tem esse papel fundamental de criar o contexto, de ser o grande articulador e facilitador desta reflexão para a organização revisitar seus mecanismos de geração de significado, de vínculos e de incentivos.

O alerta que este tema nos faz é inevitavelmente provocativo e, por vezes, assustador. Mas é também possivelmente muito inspirador, se pensarmos no potencial imenso de inovação, de criatividade e pioneirismo que ele pode nos arremessar.