Por Marcelo Cardoso

O colunista Marcelo Cardoso escreve sobre por que as corporações insistem em
uma lógica que “mata o melhor das pessoas e dos times”

Mesmo tendo registros confiáveis sobre a curvatura da terra desde a Grécia Antiga, ninclusive com cálculos bastante consistentes da sua circunferência, passamos mais de 2 mil anos e ainda hoje, em plena era da informação, nos deparando com movimentos negacionistas que insistem na tese da Terra Plana, muitas vezes criando um contorcionismo intelectual enorme para sustentar uma crença falsa arraigada.

O mundo corporativo também tem o seu próprio negacionismo, e de forma ainda mais arraigado e abrangente: a tese da remuneração com bônus por meta individual, meritocrático. Acreditar que seja possível alguém ter motivação e produzir resultados corporativos individualmente, quando tudo o que acontece na organização é fruto de esforço coletivo. Não há nada mais anacrônico e ainda tão “na moda” nas empresas.

Temos ao menos duas grandes distorções sobre esse tema. Primeiro, é a tentativa de gerar motivação a partir de objetivos externos. Dave Snowden, especialista em gestão na complexidade diz que toda vez que criamos metas extrínsecas para as pessoas destruímos a motivação intrínseca. Quando trabalhamos em sistemas adaptativos complexos, como as nossas organizações, as metas criam uma visão de túnel que entorpece a capacidade do sistema se adaptar conforme as mudanças de contexto. O melhor é definir metas vetoriais coletivas que direcionam, em múltiplos pequenos experimentos em torno de hipóteses coerentes, para descobrir o que funciona e então ampliar.

A segunda é o que já foi dito sobre a natureza colaborativa do trabalho organizacional. Insistir em premiar por meta individual quando há uma co- dependência essencial entre indivíduos e times é a receita da canibalização e da corrosão da segurança psicológica, que é a base da colaboração e inteligência coletiva. As dinâmicas de poder e a competição predatória ganham força e bombeiam o sistema com ressentimento e desconfiança.

De Jeffrey Pfeffer a Daniel Pink, de Martin Seligman a John Vervaeke, muitos especialistas estão dedicados no entendimento de como funcionamos como grupos, como criamos significado compartilhado e nos engajamos em colaboração, e os mecanismos pelos quais nos motivamos. E as evidências demonstram que existem mecanismos de incentivo muito mais intrínsecos e fundamentais do que os praticados normalmente, são abundantes e taxativos.

E não é nem preciso acreditar no que esses especialistas dizem… temos a experiência prática dos próprios executivos seniores do C-level e conselheiros, que alcançaram o topo possível de suas carreiras: quando perguntados, dizem que seus grandes momentos não foram motivados pela perspectiva da meta individual estabelecida, mas quando o que fizeram fazia sentido, tinha significado intrínseco.

O curioso é que esses mesmos líderes, ainda assim, recorrem a essa mentira persistente dos modelos de incentivo tradicionais de bonificação individual que não só são contraproducentes, mas até destrutivos. Nada mais negacionista do que isso.

Movimentos atuais como “desistência silenciosa” e outros que ocorrem no trabalho demonstram que aquilo que parecia funcionar não está mais parecendo, sobretudo para as novas gerações de profissionais. Então, até quando as corporações insistirão nessa lógica que mata o melhor das pessoas e times?

Quando a força gravitacional das organizações negacionistas se esvair completamente, restará em torno delas uma espécie de apocalipse zumbi desvitalizado e triste. Dos seus escombros e fissuras, poderemos ver que algo novo está brotando: novos arranjos coletivos orientados por significado e colaboração autêntica, onde pessoas respiram aliviadas um novo ar, pois não há mais necessidade de “crachás” com nomes bonitos de cargos, nem privilégios para se competir, nem egos feridos para se contornar. Pois já não compram mais a ideia de uma terra plana corporativa, e estão ávidos por trabalhar em conjunto por algo que traga benefícios reais para o todo.

Link para o artigo original: https://valor.globo.com/carreira/coluna/por-que-vemos-genios-e-loucos-de-forma-apaixonada.ghtml

Marcelo Cardoso é fundador da consultoria Chie e presidente do Instituto Integral Brasil