Por Marcelo Cardoso

O colunista Marcelo Cardoso escreve sobre como traumas e situações da infância podem influenciar comportamentos de gestores no trabalho

Você já considerou levar ao trabalho a sua criança junto com você? Eu não estou falando de filhos, nem uma criança qualquer. Eu falo daquela que você foi quando tinha sete anos de idade.

Viola Davis descreve, em sua biografia, como ela ficou mobilizada quando Will Smith perguntou: “quem é você?” E a sua resposta foi: “Eu sou a menina de oito anos correndo e fugindo do bullying todos os dias de volta para casa”. Ao longo do livro ela reconhece que continua sendo aquela mesma menina. E que só encontrou paz interna e significado existencial quando começou a acolher a sua própria menina interna, durante seu processo terapêutico.

De acordo com a psicologia do desenvolvimento, os scripts que formam a nossa personalidade são construídos nos nossos primeiros sete anos de vida, e a partir daí passamos a reforçar as narrativas que vão nos fazer sentir amados e valorizados em nossos relacionamentos e na vida.

Uma parte importante desses scripts baseia-se em necessidades que não foram atendidas, padrões que acontecem com todos nós – de forma mais ou menos traumática. Parte da nossa busca para cumprir nosso script envolve confirmar esses traumas, encontrando pessoas e situações que não vão nos dar aquilo que desejamos visceralmente e que nos faltou na infância. Parece um contrassenso, mas funcionamos assim porque, apesar de ser dolorido, essas carências são familiares para nossa criança interna, o lar doce lar.

O trabalho representa uma dimensão importante de como reforçamos a nossa identidade na vida adulta, conforme atestava o psicólogo Adolf Adler. E a forma como ainda hoje nos organizamos – em torno de hierarquias rígidas, empregos e engajamento por meritocracia – ativa o script de carência das pessoas, ao experimentarem a gangorra de sucesso e fracasso, pertencimento e exclusão, validação e invalidação. No fundo, as empresas se alimentam da energia psíquica das pessoas e de sua vitalidade para produzir mais lucro.

Podemos mudar a experiência no trabalho. Essa é a razão do meu convite inicial, pois quando reconhecemos a nossa parte infantil, podemos transcender e incluir nossos scripts, e nos apropriar da vivacidade, criatividade e inocência da criança, ao mesmo tempo que, como adultos, cuidamos dela não projetando carências fora de nós.

Eu tive experiências ricas desse tipo quando era vice-presidente da Natura. Durante as reuniões do comitê executivo, eu imaginava meu menino sentado no meu colo, e, quando as dinâmicas se tornavam intensas e o impulso imediato dele era mostrar seu valor e “ganhar uma discussão”, eu o acalmava dizendo mentalmente que ele não precisava provar nada para ser amado. Essa prática me poupou inúmeras vezes de entrar em conflitos exaustivos e tóxicos, que não levam a lugar nenhum.

Na consultoria, quando facilitamos equipes seniores, temos um código para declarar quando essa dinâmica de projeção está presente. Chamamos eles de “quinta série B”, uma forma de ajudá-los a mudar de padrão. Infelizmente, a maioria das decisões importantes, não só nas empresas, mas em todos os ambientes de poder, são tomadas por adultos com maturidade emocional de pré-adolescentes. As crianças estão presentes, mas não estão sendo vistas.

Por trás de todo líder tóxico que impõe sua vontade e pretensa força, que não nutre empatia pela realidade do outro, tem uma criança ferida que deseja ser amada pelo que é e não pelo que faz, ou pelo status ou temor que provoca.

Este tem sido um exercício difícil e permanente: imaginar aqueles que me incomodam pela forma com que agem, como apenas uma outra criança querendo atenção.

Acredito que organizações podem experimentar um outro tipo de contrato psicológico, entre humanos maduros que se autoconhecem o suficiente para cuidar de suas crianças, e apesar de suas dores, se apresentarem diante do trabalho com abertura e vulnerabilidade, para nesse reconhecimento transformarem a experiência coletiva, criando um espaço de aprendizagem restaurativo para a sociedade.

Link para o artigo original: https://thinkworklab.com/artigos/equilibrio-nas-pautas-de-diversidade/

Marcelo Cardoso é fundador da consultoria Chie e presidente do Instituto Integral Brasil