Por Marcelo Cardoso

Marcelo Cardoso explora o conceito de zonas de estiramento e como as organizações podem criar ambientes de desenvolvimento para impulsionar o crescimento individual e coletivo

Cresci em uma família brasileira como tantas outras, de origem simples, digna e de classe trabalhadora. Era uma família com a presença de muitos homens. Irmão, primos, tios… e em uma geração que reproduziu os padrões culturais e estereótipos de gênero que ainda carregamos em nossa cultura: menino tem que jogar bola, ser competitivo, “se garantir”, não demonstrar muito afeto. E, assim, fui estimulado a manifestar minha natureza “masculina”, enquanto reprimia minhas características “femininas”, de intuição, sensibilidade e afeto.

Assim acontece com todos nós em nossos processos de criação de identidade, formamos cascas em busca de aceitação e afirmação, de acordo com os ambientes em que estamos e com aquilo que nos acontece, tentando acomodar as características que trazemos naturalmente.

No meu caso, além do ambiente em que fui criado, minha personalidade foi fortemente marcada por um episódio de abuso que sofri na infância. Esse trauma me fez crescer com uma casca ainda mais carregada na expressão do masculino, e ainda mais reprimida em minha expressão feminina. Se, por um lado tais características me favoreceram no trabalho, que valoriza os traços de competitividade e assertividade que eu aprendi a desempenhar desde jovem; por outro me trouxeram um alto custo nas minhas relações de forma geral, e em particular com as mulheres.

Ao longo da minha vida precisei de muita terapia e autocuidado para integrar minha energia feminina, tentando resolver a hipertrofia dos aspectos masculinos. É um trabalho de cura que eu tenho consciência que é para a vida toda.

Estes aspectos que são nomeados pelo senso comum como “masculinos” e “femininos” são na verdade princípios universais que existem a despeito da sexualidade e das questões de gênero, características que tanto homens, mulheres e transgêneros podem manifestar. As organizações também estão hipertrofiadas pelo excesso de estrutura, direção e foco, em detrimento aos aspectos de fluxo, comunhão e relação, que são características essenciais que deveriam ter maior relevância no contexto profissional.

O custo dessa desvalorização afeta a capacidade para inovação, a prontidão para transformação, a qualidade de bem-estar no ambiente e o engajamento; enfraquece a qualidade das relações e da segurança psicológica; e principalmente, afeta a capacidade de a organização entregar serviços e produtos capazes de regenerar a sociedade, e não apenas visar lucros.

Atualmente vemos um aumento importante da representatividade feminina na política e na liderança das empresas. São notícias que temos que comemorar, embora ainda tenhamos tanto a fazer em termos de diversidade e equidade de gênero, além da luta contra o abuso e a violência, que infelizmente ainda são realidades tristes e persistentes.

Embora haja uma presença cada vez maior das mulheres em cargos de poder, ainda é uma incerteza se isso se refletirá também em uma mudança da própria natureza das organizações e do poder, em suas características ditas “masculinas” e “femininas”. Uma vez que as organizações surgiram majoritariamente de estruturas militares, elas criaram um viés “masculinizado” em seus processos, intenções e modos de operar; e muitas mulheres que batalharam o seu espaço em posições de poder também fizeram em sacrifício das características mais “femininas”. Por esta razão que vejo que a transformação do perfil demográfico da liderança não implica automaticamente em uma mudança no perfil cultural; embora pareça evidente que essa mudança será muito mais fácil de acontecer em ambientes realmente diversos. É fundamental uma agenda de diversidade, equidade e inclusão, com políticas afirmativas para posições de liderança nas organizações, também é vital o equilíbrio dinâmico destas características na própria estrutura e cultura das organizações. Que esse novo conjunto de valores, a partir desta meta-polaridade, possa sustentar o surgimento de organizações mais saudáveis e equilibradas.

Link para o artigo original: https://valor.globo.com/carreira/coluna/integrando-o-masculino-e-o-feminino-nas-empresas.ghtml

Marcelo Cardoso é fundador da consultoria Chie e presidente do Instituto Integral Brasil