Por Marcelo Cardoso

O colunista Marcelo Cardoso escreve que o imperativo de expansão prevalece sobre qualquer intenção transformadora.

Sigo trabalhando com organizações. Esse é o meu lugar de contribuição. Trabalho desde os 14 anos e conheço de perto as luzes e sombras das organizações – e do sistema que as molda. Já não atuo com a ilusão de que elas, por si só, serão protagonistas da transformação que entendo que o mundo precisa. Mas sigo, porque nas falhas e brechas de seu funcionamento ainda podem emergir novas possibilidades.

Nas últimas décadas, me dediquei a trazer mais consciência para as organizações com a ideia de que, pelo seu poder, poderiam transformar o sistema. Participei da criação de metodologias, escrevi livro, acompanhei líderes, sustentei processos longos de desenvolvimento. Projetei minha identidade no sucesso de algumas dessas tentativas. Mas os ciclos se repetem. O que se constrói em anos se desfaz com uma nova caneta. Como aprendemos com a teoria da complexidade, quando um impulso destrutivo se manifesta – mesmo em sistemas promissores – é comum haver regressão. E é doloroso testemunhar esse movimento, principalmente quando se está implicado.

É o que é. O desafio é estrutural e sistêmico. As organizações operam dentro de um sistema que exige crescimento constante. Mesmo aquelas que se declaram de impacto, que cultivam valores humanos e ambientais, continuam prisioneiras da métrica do lucro – e, mais ainda, do lucro com expansão contínua.

Nate Hagens chama isso de “a prisão do crescimento”. Paul Hawken sintetiza: “Estamos roubando o futuro, vendendo o futuro e chamando isso de PIB. ” No fundo, criamos uma cultura que compra o que não precisa para anestesiar necessidades emocionais que não conseguimos nomear – e as empresas e o mercado de consumo são os canais dessa dinâmica.

Mesmo organizações admiradas por seu compromisso com a sustentabilidade enfrentam esse limite. Empresas profundamente progressistas e comprometidas com impacto positivo, ainda operam dentro de uma lógica que as impede de realizar plenamente o que propõem. Enquanto o sistema funcionar a partir de mecanismos que recompensam apenas crescimento econômico e escala – especialmente para empresas de capital aberto – não há espaço estrutural para a regeneração verdadeira. A cada ciclo, o imperativo de expansão prevalece sobre qualquer intenção transformadora. O sistema engole a visão.

Foto: Arina Krasnikova

Essa realidade aparece em todos os setores e indústrias. Há empresas sérias e éticas, que reconhecem o impacto de seus modelos e buscam alternativas, mas seguem capturadas por uma engrenagem que inclui investidores, analistas de mercado, metas, conselhos e bônus pressionando na direção oposta. E isso sem falar das organizações que operam com plena consciência de seu impacto negativo – aquelas que deliberadamente “vendem o jantar para comprar o almoço” , gastando bilhões em lobby para manter vivos os combustíveis fósseis, os agrotóxicos e os algoritmos sem regulação. Nesse caso, não há ingenuidade – há cálculo.

Diante disso, surge o paradoxo: se não acredito mais que as organizações sejam, por si só, o veículo da transformação que o mundo precisa, por que sigo trabalhando com elas?

Porque é onde posso servir. Porque tenho legitimidade, conhecimento das dores das pessoas – porque as senti também. Não mais a partir da ilusão de impacto ou da expectativa de grandes viradas, mas a partir da disposição de cultivar clareiras de consciência, vínculos mais maduros, espaços onde ainda seja possível sustentar profundidade e aprendizado.

Organizações são ecossistemas compostos por narrativas, em fluxos de afetos, poder e valor. São mais parecidas com florestas do que com máquinas. E, como florestas, têm zonas de sombra e de germinação. Há sempre possibilidades – mas elas são locais, frágeis, contextuais. Não estruturais.

Por isso, mudei o olhar sobre meu ofício. Já não opero a partir da crença de que a organização vai “transformar os sistemas” . Hoje, busco criar microcontextos férteis com ênfase nas pessoas e nas relações, abrindo pequenas frestas onde algo inusitado possa emergir.

Os caminhos de maior transformação virão de fora do centro do sistema. Da filantropia mais ousada. Do capital híbrido. De modelos comunitários. De experimentos que ainda não têm nome. Mas, enquanto esses futuros germinam, sigamos aqui – com os pés no chão das organizações, o coração aberto, cultivando o possível.

Não por otimismo. Nem por pessimismo. Mas por compromisso com a vida – e com aquilo que ainda pode florescer.

Link para o artigo original: https://valor.globo.com/carreira/coluna/em-todos-os-setores-o-sistema-engole-a-visao.ghtml

Marcelo Cardoso é fundador da consultoria Chie e presidente do Instituto Integral Brasil