Por Marcelo Cardoso
O colunista Marcelo Cardoso escreve sobre a necessidade de não projetarmos nossas carências individuais no trabalho.
Não é a empresa nem a comunidade que podem nos dar um lugar no mundo. Pertencimento nasce de um trabalho pessoal – e só então pode se transformar em escolha madura por vínculos coletivos saudáveis.
Escrever este texto não é simples para mim. Misturei por muito tempo a minha identidade com o meu trabalho. Acreditei profundamente que as empresas poderiam ser espaços de engajamento verdadeiro – para mim e para tantas outras pessoas. Investi tempo, energia e sonhos nessa crença. E talvez seja justamente por isso que hoje me dói reconhecer: o trabalho tem um papel fundamental na nossa vida, mas não é lugar para projetar pertencimento.
Chris Argyris chamou de contrato psicológico o acordo tácito que guia a relação entre pessoa e organização. Vivi esse contrato em sua intensidade. Entreguei dedicação, lealdade e até partes da minha identidade. Recebi de volta salário, benefícios e, em alguns momentos, narrativas de propósito que me mantinham de pé. Mas o contrato sempre se revelou assimétrico. Basta uma crise para que a promessa se desfaça. Aprendi, muitas vezes a duras penas, que no trabalho devemos colocar apenas a energia psíquica adequada a um contrato – nem mais, nem menos.
Se as empresas não são casas de pertencimento, onde está esse chão? Em minhas buscas, encontrei a reflexão de Karl Polanyi. Tive meu primeiro contato com seu pensamento em um laboratório de aprendizagem sobre Felicidade Interna Bruta, facilitado por Otto Scharmer.
Polanyi mostra que, antes da Revolução Industrial, a vida econômica estava enraizada na vida comunitária. Trabalho, troca e cuidado eram parte de uma mesma experiência. A modernidade quebrou esse laço e transformou o trabalho em esfera separada, exigindo engajamento sem nunca oferecer pertencimento. Quando percebi isso, entendi por que tantos de nós nos sentimos órfãos no trabalho: pedimos a ele algo que nunca poderá nos dar.
Foi então que me voltei às comunidades. Participei de várias, em diferentes lugares do mundo. Experimentei nelas momentos de grande vitalidade, mas também vivi frustrações. Vi a paralisia que surge quando um grupo se refugia em ideais, as sombras não integradas que contaminam relações, as promessas que não se cumprem. Essas experiências me ensinaram que a comunidade não é solução mágica.
Peter Block lembra que comunidades verdadeiras se constroem a partir de vulnerabilidade, respeito e corresponsabilidade. E percebi na prática como isso exige maturidade individual.
Há uma distinção crucial que aprendi nesse caminho: pertencimento não é o mesmo que necessidade de reconhecimento. O reconhecimento vem do olhar do outro, e por isso pode ser retirado a qualquer momento.
Já o pertencimento nasce de um trabalho pessoal, de honrar a própria história e reconciliar-se com o passado.
É a sensação de ter lugar no mundo – e, quando ela existe, qualquer lugar pode ser o seu lugar. Nem a empresa nem a comunidade podem preencher essa lacuna. Só o autoconhecimento sustenta esse chão.
Por isso, acredito que comunidades só florescem quando compostas por indivíduos dispostos a não projetar nelas suas carências não resolvidas.
O pressuposto de uma comunidade saudável está no paradoxo de pessoas que, inteiras o bastante, se colocam a serviço do coletivo. Não para buscar completude, mas para criar juntos algo maior do que cada um poderia sozinho.
Hoje compreendo que o pertencimento não é algo que possa ser dado por uma empresa ou por uma comunidade. Ele nasce de um trabalho pessoal: honrar nossa própria história, integrar nossas feridas e reconhecer que já temos um lugar no mundo.
Quando esse chão interno existe, podemos escolher de forma mais madura os grupos e comunidades com os quais queremos caminhar.
O desafio que se coloca é se nós, como indivíduos, vamos amadurecer o suficiente para sustentar esse tipo de vínculo – e, em paralelo, como empresas e comunidades poderão evoluir para se tornarem lugares coletivos realmente saudáveis. Lugares onde não projetamos nossas carências, mas onde nos comprometemos a aprender uns com os outros e a colocar nossa inteireza a serviço de algo maior.
Link para o artigo original: https://valor.globo.com/carreira/coluna/vivemos-entre-o-cinismo-e-os-boletos.ghtml
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